quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Somos Especiais! O Significado da Imagem de Deus no Homem Gênesis 1:26-31

Introdução

Qual o significado de Deus ter-nos criado a sua imagem e semelhança? Qual a implicação para a vida cristã? Isto implica somente em privilégio ou também em responsabilidade?
A visão e o entendimento que tivermos acerca de nossa criação, certamente irão afetar a nossa cosmovisão e irá determinar nossa agir no mundo.
Mais do que nunca se faz necessário entendermos tal verdade, para que possamos participar de forma responsável da criação de Deus e servi-lo no mundo criado.
Vamos refletir acerca de nossa criação e assim verificar as implicações relacionadas a este ato glorioso de Deus.

1. Fomos criados de uma maneira especial
Quando estudamos o registro acerca da criação de Deus de todas as coisas e seres vivos, que está em Gênesis 1 e 2 percebemos que o homem foi criado de uma maneira diferente. As outras coisas e criaturas foram criadas pela simples ordem de Deus: “Disse Deus: haja luz; e houve luz... E disse Deus: Haja firmamento... Disse também Deus: Ajuntem-se as águas... E disse: Produza a terra... Disse também Deus: Haja luzeiros... Disse também Deus: Povoem-se as águas de enxames de seres viventes; e voem as aves... Disse também Deus: Produza a terra seres viventes... animais domésticos, répteis e animais selváticos...” (Gn 1.3, 6, 9, 11, 14, 20 e 24). Contudo, quando cria o homem, não o faz por uma simples ordem, e sim através de um entendimento, um conselho, de Deus com Ele mesmo. Lemos em Gênesis 1:26: “Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança...” Isto não é dito quando Deus criou os outros seres. A expressão verbal “façamos”, está na primeira pessoa do plural. Isto indica a pluralidade de pessoas em Deus. Prova-nos, juntamente com outros textos bíblicos, que em Deus há três pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo. Na criação do homem, Deus se aconselha consigo mesmo. As três pessoas da Trindade, em entendimento entre elas, resolvem criar o homem e mulher, a sua imagem e semelhança. Calvino diz que: “Até aqui Deus tem se apresentado simplesmente como comandante; agora, quando ele se aproxima do mais excelente de todas as suas obras, ele entra em consulta".1
Na criação do homem e mulher, Deus se envolve mais pessoalmente. No relato mais detalhado acerca da criação do homem e mulher, em Gênesis 2:4-20, Deus forma o homem do pó da terra e sopra nele o fôlego de vida. A mulher é criada da costela de Adão. Quando Deus cria os outros animais, ordena que eles sejam criados, já com respeito ao homem e mulher, Ele mesmo, forma do pó, sopra o fôlego de vida, toma da costela e etc. Isto serve para demonstrar, nossa dignidade, nosso valor para nosso Deus. Fomos criados de uma maneira especial e maravilhosa. Na criação do homem Deus estabelece um vínculo muito íntimo de relacionamento.

2. Fomos criados com habilidades especiais
Somos diferentes no que diz respeito às habilidades atribuídas a nós. Somente o homem e a mulher, foram criados a “imagem e semelhança” de Deus.2 Estas duas palavras são sinônimas, enfatizando que a humanidade é uma imagem que é semelhante a Deus mesmo. Quando dizemos que somos a imagem e semelhança de Deus, não estamos falando da aparência física, pois Ele é Espírito (Jo 4:24). Estamos falando das habilidades, que o homem recebeu e que refletem o ser de Deus, sendo elas:
a) Justiça e retidão: O homem foi criado justo, reto, sem pecado, bom, assim como é Deus.
b) Personalidade: O homem é um ser que possui personalidade própria, possui individualidade. Cada pessoa tem o seu temperamento, preferências, desejos, diferentes de outras. Por causa dessa característica que possuímos, podemos também nos relacionar com outras pessoas e com Deus.
c) Liberdade: Deus criou o homem com liberdade para escolher. Podia escolher entre obedecer a Deus ou não.
d) Conhecimento Espiritual: O homem tinha compreensão exata acerca de Deus.
e) Imortalidade: Foi criado para viver eternamente. Embora, o pecado tenha produzido a morte, o homem nunca deixa de existir.
f) Espiritualidade: Tinha a capacidade de estar em comunhão com Deus. Esta comunhão não tinha o obstáculo do pecado.
g) Domínio sobre a natureza: Homem e mulher eram gerentes, administradores de Deus, deveriam cuidar do jardim, cultivar a terra, dominar sobre os animais e cuidar de toda a criação.
h) Inteligência, razão e afeições: as ações do homem são determinadas pelo raciocínio, razão e sentimentos, enquanto que as ações dos animais são determinadas pelo seu instinto natural.
Com todas estas habilidades, o homem espelha a Deus. É claro que, com a queda do homem pela desobediência (Gn 3), esta imagem e semelhança foi deformada. Contudo, mesmo depois da queda, o homem continua a ser a imagem de Deus (Gn 9.6 e Tg 3.9). Esta imagem, que foi deformada pelo pecado, através de Cristo, ela é transformada, restaurada, gradativamente. Aqueles que crêem em Cristo, estão sendo transformados a semelhança de Cristo, ou seja, a semelhança de Deus (Rm 8.29; 2Co 3.18).
Somos de fundamental importância no atuar do reino de Deus. Não recebemos habilidades tais, para usarmos a nosso bel prazer e sim, para refletirmos diante da criação a imagem de Deus.

3. Fomos criados para um papel especial
Somos diferentes também, no que diz respeito ao papel que desempenhamos.
Homem e mulher foram criados para espelhar, refletir, imitar a Deus. Foram criados para serem representantes de Deus, seus administradores. Como já nos referimos acima, eles deveriam dominar sobre a criação, cuidar do jardim, cultivar a terra, dar continuidade a raça humana através da procriação e etc. As habilidades que receberam de Deus, deveriam ser usadas neste importante papel, de espelhar e representar a Deus.
É importante enfatizarmos que, tal papel continuou sendo válido, ou seja, continuou sendo um dever ordenado por Deus para ser obedecido, mesmo depois da queda. É claro que, depois da queda, homem e mulher, já não podem mais, exercer este papel com perfeição, contudo aqueles que são de Cristo, por que estão sendo transformados, podem melhor cumprir este papel, de tal forma que a imagem de Deus é refletida de uma maneira mais clara.
Este papel deve ser desenvolvido, em três relacionamentos diferentes, mas que contudo envolvem todo o nosso viver neste mundo:
1. Relacionamento social: Homem e mulher, devem se relacionar, constituir família, criar filhos, e desta forma, vivendo em harmonia devem espelhar a Deus. Este relacionamento se estende a todas as pessoas. Por isso, vemos que em toda parte da Bíblia, somos incentivados a desenvolver um bom relacionamento, a expressar respeito, amor, para com os nossos semelhantes; sejam eles os familiares (Gn 2.20-25; Sl 128; Ef 5.21-6.4), o próximo (Mt 22.34-40; Rm 12.9, 10, 17 e 18), os inimigos (Mt 5.43-47; Rm 12.14, 19, 20 e 21) ou irmãos em Cristo (Gl 6.10; 1Jo 3.11-24).
2. Relacionamento cultural: Ao homem cabe a tarefa de dominar, administrar a criação de Deus (Gn 1.26-29; 2.15-17). Este relacionamento envolve os aspectos, político, educacional, comercial, de trabalho, artístico, tecnológico, de recreação. Tudo pertence a Deus, cada aspecto deste mundo, desta forma, devemos em tudo ser fiel ao nosso Deus e fazer o melhor para Ele, honrando-o e glorificando-o (Ef 6.5-9; 1Co 10:31).
3. Relacionamento Espiritual: Desde a sua criação, Deus tem chamado o homem a um relacionamento que, envolve a obediência. Adão e Eva no Éden, deveriam obedecer a ordem dada a eles de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Conforme o relato de Gênesis 3:1-7, eles desobedeceram este mandamento e assim o relacionamento espiritual foi quebrado. Contudo, logo em seguida (Gn 3:15), Deus anuncia a vinda daquele (Cristo) que, viria para destruir o poder do diabo e restaurar este relacionamento quebrado (Rm 5.1-11). Em Cristo Jesus e através dele temos a comunhão com Deus restaurada e somos chamados para viver em obediência a Ele. Este relacionamento ou comunhão com Deus, é também exercido com todos aqueles que fazem parte da Igreja de Cristo.
Somos especiais, com um papel importantíssimo, ou seja, espelhar a Deus, representá-lo, diante de todo o mundo, de toda a criação.
Percebam que privilégios geralmente são seguidos por responsabilidades. Fomos criados diferentes de todas as criaturas e temos também a responsabilidade de administrar, cuidar do que Deus criou.
Estamos debaixo de um pacto com Deus, onde nos é exigido obedecer os mandatos da criação, pois para isso é que fomos criados.

Conclusão
Vimos como Deus nos criou de uma maneira totalmente especial, no contexto do reino da criação, com a função de que em cada área da vida possamos nos desenvolver, administrando sua criação.
Precisamos evitar o desequilíbrio, em dar atenção ao cumprimento de um mandato e não dar atenção ou desenvolver os outros.
Deus não nos criou para ser individualistas, mas, para nos aplicarmos a beneficiar toda a criação para sua glória.
Que possamos cumprir nosso papel no mundo, em todas as áreas, de forma adequada, glorificando a Deus.
1 Citação extraída do trabalho A Imagem de Deus no Homem segundo Calvino, da Academia Calvinia.

2 Em nossos dias vemos um cuidado exagerado com os animais domésticos. Pessoas gastam fortunas para dar conforto e saúde a seus animais de estimação. Outras protestam e até mesmo destroem patrimônio alheio alegando defender os direitos dos animais. Não sou contra a proteção de animais, tampouco contra alguém cuidar de forma adequada de seu animalzinho, dar a melhor ração, levar ao veterinário, aliás, na minha opinião se você tem um animal de estimação, então cuide adequadamente ou dê para alguém que vai cuidar. Sou contra alguém maltratar um animal. Na minha opinião se alguém maltrata um animal, ou o submete a tortura, deve ser responsabilizado até mesmo criminalmente. Sendo assim, deixo bem entendido, que sou contra o exagero e a dimensão que toma as causas em defesas de animais. Por outro lado vemos outros defendendo por exemplo, o aborto e o uso de embriões humanos em pesquisas científicas, e tal posição parece ser aceita por muitos e ganha proeminência da mídia. Tudo isso indica um desiquilíbrio. Dá-se mais valor a vida animal do que a vida humana. Realizar pesquisas com animais é considerado inaceitável e desumano e até mesmo desnecessário, mesmo que seja com o fim de produzir medicamentos que prolongue a vida humana. Por outro lado, aceita-se a realização de pesquisas com embriões humanos, afinal de contas, defende-se que é com o fim de trazer a cura e prolongar a vida humana. Há outros que defendem o aborto, alegando que a mulher deve decidir, se lhe é conveniente ou não ter um filho. Perdemos assim de vista o valor e a dignidade humana atribuídas a nós pelo Criador. A vida animal é tratada com mais respeito, do que a vida humana. A que ponto chegamos? Salvar um animal se tornou uma ato mais humano, do que defender a vida humana embrionária, ou ser contra a interrupção de uma gravidez. As leis são cada vez mais rígidas para quem mata um animal (pior se for silvestre) do que para alguém que mata uma pessoa, um homem ou uma mulher feitos a imagem e semelhança de Deus.   

Vida Animal X Vida Humana: A que ponto chegamos?

Em nossos dias vemos um cuidado exagerado com os animais domésticos. Pessoas gastam fortunas para dar conforto e saúde a seus animais de estimação. Outras protestam e até mesmo destroem patrimônio alheio alegando defender os direitos dos animais. Não sou contra a proteção de animais, tampouco contra alguém cuidar de forma adequada de seu animalzinho, dar a melhor ração, levar ao veterinário, aliás, na minha opinião se você tem um animal de estimação, então cuide adequadamente ou dê para alguém que vai cuidar. Sou contra alguém maltratar um animal. Na minha opinião se alguém maltrata um animal, ou o submete a tortura, deve ser responsabilizado até mesmo criminalmente. Sendo assim, deixo bem entendido, que sou contra o exagero e a dimensão que toma as causas em defesas de animais. Por outro lado vemos outros defendendo por exemplo, o aborto e o uso de embriões humanos em pesquisas científicas, e tal posição parece ser aceita por muitos e ganha proeminência na mídia. Tudo isso indica um desiquilíbrio. Dá-se mais valor a vida animal do que a vida humana. Realizar pesquisas com animais é considerado inaceitável e desumano e até mesmo desnecessário, mesmo que seja com o fim de produzir medicamentos que prolongue a vida humana. Por outro lado, aceita-se a realização de pesquisas com embriões humanos, afinal de contas, defende-se que é com o fim de trazer a cura e prolongar a vida humana. Há outros que defendem o aborto, alegando que a mulher deve decidir, se lhe é conveniente ou não ter um filho. Diga-se de passagem, que os defensores em sua grande maioria, nem estão discutindo, o aborto em casos de saúde ou risco de vida, ou ainda no caso de violência sexual. A grande maioria dos defensores, querem mesmo é legalizar o aborto, por razões as mais fúteis. Perdemos assim de vista o valor e a dignidade humana atribuídas a nós pelo Criador. A vida animal é tratada com mais respeito, do que a vida humana. A que ponto chegamos? Salvar um animal se tornou uma ato mais humano, do que defender a vida humana embrionária, ou ser contra a interrupção de uma gravidez. As leis são cada vez mais rígidas para quem mata um animal (pior se for silvestre) do que para alguém que mata uma pessoa, um homem ou uma mulher feitos a imagem e semelhança de Deus.  

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Efeitos da Reforma Protestante em sua vida


No dia 31 de outubro comemoramos o Dia da Reforma Protestante. Falar nessa data para muitos pode parecer algo sem grande significado. Talvez por não gostarem de história e quem sabe, por algo mais profundo ainda, ou seja, por não perceberem os efeitos desse movimento em suas vidas.
É importante percebermos em nossa vida os efeitos e as contribuições trazidas pela Reforma Protestante. Um desses efeitos tem a ver com a valorização do indivíduo. Até a Reforma Protestante, por causa do pensamento católico romano difundido, o indivíduo não era valorizado. No pensamento católico romano somente a vida do clero tinha significado, enquanto que a vida do leigo, ou seja, do povo em geral, era vista sob a tutela da igreja. A Igreja Católica Romana estabeleceu um dicotomia entre a vida sagrada, ligada ao clero, e portanto, mais elevada e significativa e a vida profana, ligado ao povo, mundana sem significado.
Martinho Lutero e João Calvino contribuíram para a valorização do indivíduo e sua autonomia em relação a igreja institucional e seu clero. Lutero e Calvino combateram a ideia de duas classes de pessoas na igreja, a do clero e do leigo. Perante Deus somos todos iguais. Todos podem se aproximar de Deus pela mediação única de Cristo. Pelo fato de sermos todos sacerdotes, somos constituídos não só do privilégio de podermos nos achegar a Deus, mas também da responsabilidade de intercedermos por nossos irmãos. Com a redescoberta da doutrina bíblica do sacerdócio universal dos crentes, a vida ganhou significado e importância.
 No que se refere a leitura da Bíblia, primeiro Lutero e depois Calvino, entenderam a necessidade de todo o povo poder ter acesso à ela, poder lê-la e interpreta-la. Não há dois tipos de crentes.  Uma das primeiras iniciativas de Lutero foi traduzir a Bíblia para a língua alemã, para que todos pudessem ter acesso a ela. Até então, no pensamento católico, a igreja era a guardiã desse livro e somente o clero podia interpretá-la, mesmo porque o povo não sabia ler e nem era incentivado a isso. Este é um efeito da Reforma, que muitas vezes não percebemos. Se tornou tão comum ter a Bíblia em casa escrita em nossa própria língua, poder lê-la sem qualquer culpa e receio, que nos esquecemos de que isso é efeito da Reforma Protestante.
Esta mudança de pensamento em relação ao indivíduo, que se tornou característico no pensamento das igrejas protestantes irá desencadear mudanças mais profundas. Para os reformadores toda a vida deve ser considerada espiritual, ou seja, todos os aspectos da vida devem ser visto sob o prisma de nosso relacionamento com Deus. Tudo deve ser feito para a sua glória. Somos sacerdotes de Deus no mundo e temos o dever de fazer tudo para a glória do Senhor. Não havendo a dicotomia entre vida sagrada e vida profana, sendo toda vida considerada do prisma espiritual, isto provocou uma mudança bastante significativa nas diversas atividades trabalhistas. O trabalho ganhou um novo status. Passou a ser uma atividade legítima e espiritual. Através dele o homem deve servir a Deus e a seu próximo. Foi isto que fez com que os países que abraçaram a Reforma, se desenvolvessem rapidamente e se distinguissem daqueles que não abraçaram a Reforma.
No dia 31 de outubro, ao pegar sua Bíblia e ler e poder interpretá-la aplicando seus ensinamentos a sua vida; ao poder dobrar seus joelhos orar por você e por seus irmãos somente pela mediação de Cristo; ao sair para o seu trabalho, encontrando nele satisfação por poder servir a Deus e ao próximo através dessa atividade; lembre-se que esse entendimento que você tem são efeitos da Reforma Protestante em sua vida. Portanto, em tal data, como sacerdote dobre seu joelho e agradeça a Deus por ter usado seus servos para fazer com que as verdades bíblicas mencionadas, fossem redescobertas e trazidas novamente à superfície.



quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O pensamento reformado e a questão do indivíduo – Lutero e Calvino

 





A reforma protestante significou um rompimento com o Catolicismo. No contexto católico romano, a atitude valorizada estava ligada à vida religiosa clerical, enquanto a laica era considerada de menor valor.
No entanto, mudanças começavam a surgir e no século XVI elas ganhariam força e provocariam um enfraquecimento definitivo no domínio exercido pela Igreja Católica. O Renascimento e o Humanismo foram movimentos que contribuíram para isso. Por meio de tais movimentos, surgiram homens que valorizaram o livre pensamento e a ação autônoma do indivíduo, em relação à Igreja Católica. Calvino foi um desses humanistas[1].
Sobre o Humanismo, como uma das causas da Reforma, diz André Biéler:
                   Tem-se na eclosão do humanismo uma das causas da Reforma. Certamente que esta renovação                    intelectual, como outros muitos fatores históricos, contribuiu amplamente para facilitar a                                expressão e a formulação da doutrina dos Reformadores.[2]

Martinho Lutero e João Calvino foram alguns desses homens que surgiram na época e que mudaram o rumo do Cristianismo. Influenciados por seus mestres, ambos, cada um em sua época, o primeiro na Alemanha e o segundo na França[3], romperam com a Igreja que abominou o que propunham. É importante ressaltar que os jesuítas, na mesma época, influenciados pelo humanismo renascentista, se expressaram de forma diferente em relação à Igreja Católica, porém, assim como os reformadores, deram atenção a leitura bíblica e escreveram diversos comentários ao texto bíblico[4]
Martinho Lutero era monge agostiniano. Enfrentava uma crise existencial e em contato com o estudo das Escrituras Sagradas (Bíblia) compreendeu que a religiosidade ensinada pela Igreja Católica – fundamentada na devoção aos santos mediada por imagens e relíquias consideradas sagradas – contrariava o ensino bíblico. Além de condenar as penitências[5], Lutero propôs com seus ensinos que cada cristão devesse ler as Escrituras[6]. Daí uma de suas primeiras iniciativas foi traduzir para a língua alemã os livros da Bíblia. Para Lutero, todo crente era sacerdote de Deus e, portanto, não precisava da mediação dos sacerdotes católicos para se achegar a Deus. “Lutero rompeu decisivamente com a divisão tradicional da igreja em duas classes, clero e laicato”.[7] Essa atitude contribuiu para a mudança quanto à concepção de indivíduo. Para Lutero, todos têm condições, pela mediação de Cristo, de se achegar a Deus, bem como responsabilidades de agir como sacerdotes. “O sacerdócio de todos os cristãos é tanto uma responsabilidade quanto um privilégio, um serviço tanto quanto uma posição”[8].
Lutero diz:
O fato de que somos todos sacerdotes e reis significa que cada um de nós, cristãos, pode ir perante Deus e interceder pelo outro. Se eu notar que você não tem fé ou tem uma fé fraca, posso pedir a Deus que lhe dê uma fé sólida.[9]

A valorização do indivíduo irá contribuir para a valorização da vida laica e de todos os desdobramentos resultantes disto. A doutrina da justificação pela fé, redescoberta por Lutero, com o contato que teve com as Escrituras, fez com que ele mudasse seu pensamento sobre a mediação exercida pela Igreja entre Deus e os homens. Em especial nos estudos que fez de um dos livros da Bíblia – a Carta do Apóstolo Paulo aos Romanos –, entendeu que sua salvação se daria pela fé somente, e que todo o sistema de mediações criado pela Igreja Católica não produzia, em seu íntimo, a paz que almejava. Tendo pela leitura do texto de Romanos – especificamente o capítulo 1, versículo 17 – encontrado a paz que almejava, começou a propagar o ensino da justificação pela fé somente.
Acerca do efeito que teve sobre ele a compreensão da leitura do referido texto, diz:
[...] comecei a entender que a “justiça de Deus” significa aquela justiça pela qual o homem justo vive mediante o dom de Deus, isto é, pela fé. É isso o que significa: a justiça de Deus é revelada pelo evangelho, uma justiça passiva com a qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, como está escrito: “Aquele que pela fé é justo, viverá”. Aqui, senti que estava nascendo completamente de novo e havia entrado no próprio paraíso através de portões abertos.[10]

Sobre a importância e consequência da doutrina da justificação pela fé em Lutero, Quentin Skinner comenta:
Finalmente, é o solifideísmo de Lutero – sua doutrina da justificação “pela fé somente” – que está na base dos dois traços centrais de seu conceito herético de Igreja. Primeiro, ele desqualifica a importância da Igreja enquanto instituição visível. Se alcançar a fidúcia constitui o único meio pelo qual o cristão pode esperar a salvação, não resta lugar para a idéia canônica da Igreja como autoridade interposta, medianeira entre o indivíduo fiel e Deus [...]. A verdadeira Igreja não passará de uma invisível congregação fidelium, de uma congregação dos fiéis unidos em nome de Deus. [...] A segunda característica distintiva em seu conceito de Igreja é que, ao enfatizar a idéia da ecclesia como nada mais que uma congregatio fidelium, Lutero também reduz ao mínimo o caráter separado e sacramental do sacerdócio. É disso que resulta a doutrina do “sacerdócio de todos os fiéis” [...]. O reformador aqui argumenta que, se a Igreja é apenas Gottes Volk, só pode haver “engodo e hipocrisia” na pretensão de que “papa, bispo, padres e monges sejam chamados estado espiritual, enquanto aos príncipes, senhores, artesões e lavradores se chama estado temporal”.[11]

Lutero desejava abolir a dicotomia que existia, conforme o ensino católico, e insistia no fato de que não há dois tipos de cristãos, um pertencendo ao estado espiritual e outro ao estado temporal. Todos pertencem ao estado espiritual, não como resultado da posição ou papel que ocupam na sociedade, mas em virtude da capacitação da fé, tornando todos igualmente capazes de serem espirituais e de constituir um povo cristão. Para Lutero, “todos os crentes, e não somente a classe sacerdotal, têm igual dever e condição de socorrer seus irmãos e de assumir a responsabilidade por seu bem-estar espiritual”. Além disso, ele se empenha em demonstrar que todo crente fiel pode se relacionar com Deus sem a mediação de qualquer intermediário. “O resultado é que em todo a sua eclesiologia, bem como no conjunto de sua teologia, constantemente nos vemos reconduzidos à figura – central – do indivíduo cristão, com sua fé na graça redentora de Deus”[12].
Lutero, em sua doutrina, valorizava justificação pela fé, bem como a Bíblia na língua do povo, e esses dois ensinos e ênfases contribuíram para o êxito da Reforma [13].
Calvino, pertencendo a uma segunda geração de reformadores, irá desenvolver ainda mais a concepção acerca do indivíduo, valorizando a sua participação ativa no mundo de Deus. Para Calvino, também, todos os crentes são sacerdotes de Deus, por isso não precisam da mediação da igreja para obter o perdão divino e, por outro lado, tudo quanto realizam no mundo, seja qual for a atividade, devem realizá-la para a glória de Deus.
Calvino diz sobre o alvo da vida do cristão:
[...] é dever dos crentes oferecerem seu corpo “por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”, que constitui o culto legítimo que lhe devemos prestar. Desse princípio decorre a exortação a que eles não se acomodem à imagem deste século, mas que sejam transformados pela renovação da sua mente, para buscar e experimentar a vontade de Deus. Temos aí um importante motivo para dizer que somos pessoas consagradas e dedicadas a Deus para que não pensemos, nem meditemos, nem façamos coisa alguma que não seja para a sua glória. Porque não é lícito aplicar algo sagrado a uso profano. Ora, se nós não nos pertencemos, mas somos do Senhor, vê-se claramente o que devemos evitar para não errarmos, e para onde devemos canalizar todas as ações que pratiquemos em nosso viver.[14]

Percebe-se nas palavras de Calvino que, diferente do pensamento Católico Romano, que concebe a vida no cotidiano como âmbito profano, para o reformador, a vida do crente e todas as suas ações são do âmbito sagrado, pois pertencem a Deus.
Assim como Lutero e outros reformadores, as concepções de Calvino são conduzidas pela interpretação das Escrituras. Calvino, além de escrever o seu tratado sobre a Religião, conhecido como As Institutas da Religião Cristã, comentou vários livros da Bíblia, obras nas quais expressou seu pensamento.
Pode-se dizer que tanto Lutero quanto Calvino defendem uma ascese intramundana. Isso irá repercutir de forma a produzir transformações em todos os âmbitos, servindo de fermento para a chamada modernidade. A concepção de Calvino, de que toda a atividade praticada pelo fiel deve glorificar a Deus, contribuiu para uma valorização do trabalho e consequentemente para o desenvolvimento econômico e tecnológico das cidades que abraçaram sua concepção teológica. Não é à toa que estudiosos estabelecem uma relação entre o Capitalismo Moderno e o Calvinismo.
Sobre essa relação, diz MacGrath:
Tão grande é a relevância do surgimento do Capitalismo moderno para a formação da civilização ocidental que, se um vínculo com João Calvino puder ser estabelecido, pode-se creditar ao Reformador – de forma positiva ou negativa – a motivação de um impulso fundamental do mundo moderno.[15]

                 João Calvino, em seus escritos teológicos, procurará demonstrar a necessidade de o crente engajar-se nas questões sociais. “Por todos os seus escritos, encontramos uma determinação de se engajar na objetiva existência social dos seres humanos, juntamente com os problemas e as possibilidades que daí derivem”[16]. “O Calvinismo, em suma, significava não apenas nova doutrina teológica e governo eclesiástico, mas nova escala de valores morais e novo ideal de conduta social”[17].
A concepção alcançada por Calvino, de que o fiel deve engajar-se nas atividades seculares para glorificar a Deus, produziu uma valorização do trabalho. Para Calvino “o fiel não é chamado [por Deus para a salvação] a deixar o mundo e a ingressar em um monastério, mas a ingressar plenamente na vida do mundo e, assim, transformá-lo”[18]. Isso certamente contribuiu para o desenvolvimento do conceito sobre o indivíduo. A atividade do fiel, fosse qual fosse, era importante e necessária.
                 Calvino diz: “Se seguirmos fielmente nosso chamamento divino, receberemos o consolo de saber que não há trabalho insignificante ou nojento que não seja verdadeiramente respeitado e importante ante aos olhos de Deus”[19]. E, comentando o texto bíblico da Epístola de Paulo aos Efésios, em que o apóstolo orienta os servos (escravos) a servirem seus senhores como se servissem a Cristo, sabendo que serão recompensados quer fossem escravos ou livres, o reformador diz:
Que poderosa consolação! Se porventura tiverem que conviver com senhores mal-agradecidos ou cruéis, Deus aceitará seus serviços prestados a homens indignos como prestados a ele próprio. Quando os servos ponderam sobre o orgulho e arrogância de seus senhores, amiúde concluem que seu labor é de nenhum proveito, e a tendência é tornarem-se indolentes. Paulo, porém, lhes diz que sua recompensa está guardada com Deus pelos serviços que parecerem ser mal remunerados pelos homens embrutecidos; e que, portanto, não há razão alguma para que deixem de seguir seu curso predeterminado. Adiciona que nenhuma distinção deve ser posta entre um homem escravo e um homem livre. O mundo está habituado a pôr menos valor nos labores dos escravos. Ele afirma que com Deus não se dá o mesmo, senão que, para ele, são tão preciosos como os deveres dos reis. Porque a posição externa é desprezada e cada um é julgado segundo a integridade de seu coração.[20]

                        E contextualizando a mensagem da referida epístola, diz:
Este ensino, porém, se aplica também a empregados e empregadas de nossa própria época. É Deus quem determina e regula a sociedade. Visto que a condição dos empregados [de hoje] é muito mais tolerável, eles devem considerar-se muito menos escusáveis caso não se esforcem, de diversas maneiras, a comportar-se como Paulo diz.[21]

                  Essa valorização do trabalho e consequentemente do indivíduo, motivando-o a um engajamento responsável no mundo, praticando suas atividades de maneira apropriada, desencadeou o desenvolvimento industrial e financeiro de diversos países da Europa que se tornaram protestantes.
Para Calvino, o envolvimento ativo e responsável no mundo, na verdade, era uma forma de o fiel confirmar a sua vocação divina, ou seja, confirmar que, de fato, havia sido escolhido para a salvação. Desta forma, no processo da “santificação do fiel”[22], rumo a sua salvação, sua participação apropriada no mundo serviria de prova de sua vocação. “É pelo ativismo no mundo que o fiel pode garantir à sua consciência conturbada de que ele ou ela está entre os eleitos”[23].
A primitiva propensão calvinista em relação ao ativismo moral, econômica e política pode, assim, ser vista como algo que repousa sobre importantes fundamentos teológicos. Por intermédio de um envolvimento ativo nas questões seculares, sob a orientação das Escrituras, o cristão poderia firmar sua vocação e alcançar a paz de espírito (sempre um artigo precioso e obscuro, em meio aos círculos puritanos) a respeito de sua eleição. A noção de “vocação” (vocatio) deve ser interpretada nessa perspectiva: a ordem para a realizar boas obras não está ligada, necessariamente, a uma vocação secular em especial (por exemplo, ser um açougueiro, um padeiro ou um artesão que produz castiçais), mas a necessidade de demonstrar a vocação divina de uma pessoa a si mesmo a ao mundo à sua volta.[24]

Como se procurou demonstrar, a Reforma Protestante produziu uma concepção diferente acerca do indivíduo e de sua participação no mundo, contribuindo para transformações na sociedade que a abraçou.


Nota: Este artigo é parte integrante da dissertação que defendi no mestrado em Ciência da Religião, na Universidade Federal de Juiz de Fora com o título: A Implantação do Presbiterianismo em Juiz de Fora: Sua Implantação Tardia em 1950.



[1] Paul TILLICH. História do Pensamento Cristão. São Paulo: ASTE, 2004, p. 269.
[2] André BIÉLER. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 44
[3] Embora Calvino fosse francês e tenha iniciado sua caminhada como reformador na França, pelo fato de ter que fugir de seu país por causa da perseguição da Igreja Católica, tornou-se reformador em Genebra, na Suíça. Mas, de Genebra, exerceu grande influência sobre os reformados na França, enviando escritos e outras contribuições.
[4] John O’MALLEY. Os Primeiros Jesuítas. São Leopoldo: UNISINOS; Bauru: EDUSC, 2004, p. 403.
[5] Em suas 95 Teses, que foram afixadas na porta da Capela de Wittenberg, isso fica claro. Lutero condena o abuso da Igreja em vender aos fieis indulgências que, segundo a Igreja Católica, davam direito ao perdão divino, livrando o penitente do purgatório.
[6] Isso não foi algo proposto a partir de Lutero. Antes de Lutero, os chamados pré-reformadores propuseram o mesmo e procuraram disseminar entre o povo os ensinos bíblicos. Sobre a mudança da religiosidade, influenciada pela leitura bíblica, e os seus efeitos sobre a construção de uma fé livre dos laços do clero, Biéler comenta: “Desde o século XII, com São Bernardo, a piedade popular se nutre da contemplação dos sofrimentos de Cristo, do Cristo humano, humilhado pelos grandes e carregado da penalidade dos homens, na comunhão do qual ela penetra pela identidade de suas próprias misérias. Pouco a pouco, a vida humana de Jesus leva vantagem sobre Sua natureza divina e se cerca de um mundo maravilhoso de mártires de santos, que cria uma religião bastante próxima do fiel, muito familiar, todavia, sempre mais complicada e recheada de devoções supersticiosas. Por seu caráter pessoal, todavia, esta piedade contribui para mais e mais dispensar o fiel da mediação do sacerdote e a distanciá-lo da Igreja, cujas pompas e preocupações políticas o afastam cada dia ainda mais. A porta está aberta, entre o povo, a uma renovação da fé que livre a piedade de muitos obstáculos atravancadores e que, pelo uso pessoal das Santas Escrituras, redescubra direto contacto com o Deus do Evangelho, Que salva graciosamente pela só mediação de seu Filho Jesus Cristo. A necessidade de ler a Escritura, e de lê-la individual e pessoalmente, cresce, de fato, cada dia na Cristandade, nos tempos que se avizinham do século XVI, e verifica-se que é esta necessidade particularmente atendida, mercê da abençoada difusão dos textos sagrados que a recente invenção da imprensa e o crescente surto das trocas econômicas nos mercados da Europa favorecem. De 1457 a 1517 são publicadas mais de quatrocentas edições da Bíblia” (BIÉLER, p. 43).
[7] Apud, Timothy GEORGE. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Edições Vida, 1994, p. 96.
[8] Apud, Idem, p. 96.
[9] Ibidem, p. 96.
[10] Apud,  Ibidem, p. 64.
[11] Quentin SKINNER. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 292.
[12] Idem, p. 293.
[13] “A Reforma [...] há duas coisas que asseguraram o seu êxito, duas coisas que ofereceu àqueles que as desejavam ansiosamente: uma, a Bíblia na língua do povo, a outra, a justificação pela fé” (Lucien Febvre, Apud, BIÉLER, Op. Cit, p. 43).
[14] João CALVINO. As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2006, Vol. 4, p. 183.
[15] Alister MACGRATH. A Vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 255.
[16] Ibidem, p. 250.
[17] R. H TAWNEY. A Religião e o Surgimento do Capitalismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 115.
[18] MACGRATH, A vida de João Calvino, 2004, p. 263.
[19] Apud, COSTA, Hermisten. Pensadores Cristãos: Calvino de A a Z. São Paulo: Editora Vida, 2006, p. 284.
[20] João CALVINO. Efésios. São Paulo: Edições Paracletos, 1998, p. 183.
[21] Idem, p. 183.
[22] Na teologia reformada e calvinista, a santificação é um dos elementos do processo da salvação. Por toda a sua vida o crente é aperfeiçoado, mediante a santificação, em que abandona dia a dia seu pecado.
[23] MCGRATH, A Vida de João Calvino, p. 271.
[24] Idem, p. 273.