sexta-feira, 31 de maio de 2013

O Pensamento de João Calvino sobre Igreja e Estado


INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como propósito apresentar o pensamento de João Calvino sobre Igreja e Estado, procurando demonstrar que a partir da reforma protestante e do referido reformador, passou-se a pensar diferentemente do que sob a influência da Igreja Católica Romana se pensava sobre a relação dos dois regimes.
Inicialmente serão apresentadas informações sobre a vida de João Calvino, sua conversão ao protestantismo, sua jornada como reformador e sobre seus escritos. Em seguida, a parte final deste trabalho tratará sobre o seu pensamento acerca de Igreja e Estado. Será demonstrado o que pensava o reformador sobre tal tema, ou seja, a relação entre Igreja e Estado.
Sabe-se que embora João Calvino seja considerado um teólogo, pregador e pastor, contudo, seu pensamento não só influenciou a teologia protestante, como também, influenciou a prática política, econômica e social, produzindo transformações importantes em diversos países.
Calvino foi um patrono dos modernos direitos humanos. Em seu pensamento, ele antecipou a moderna forma republicana de governo. Contribuiu para a moderna compreensão da relação entre lei natural e lei positiva. Ao lado dos movimentos sociais e políticos de seu tempo, compreendeu plenamente que a origem do estado nacional moderno, o surgimento do comércio burguês internacional, o desenvolvimento da classe burguesa e a vasta expansão do mercado monetário exigiam uma nova avaliação da proibição de empréstimo de dinheiro a juro. Além disso, Calvino levantou-se contra os abusos do poder, em seu tempo, e debateu o problema do direito à revolta. O impacto de Calvino e do Calvinismo sobre a moderna cultura ocidental está bem documentado. Reconhece-se que esta influência foi grande. Calvino e Calvinismo ocuparam seu lugar entre as maiores forças que moldaram nossa moderna sociedade ocidental (REID, 1990, p. 11).

Percebe-se que estudar o pensamento do reformador é importante para compreendermos as mudanças políticas, sociais, econômicas que se implantaram a partir do século XVI, nos países que abraçaram a Reforma Protestante.

1. A Vida de João Calvino – Nascimento e preparação

João Calvino nasceu em Noyon, na Picardia em 10 de julho de 1509, em uma família onde possivelmente ele fosse o segundo filho dentre cinco irmãos (COSTA, 2006, P. 12). Era filho de Gérard Cauvin, “um respeitado cidadão” (CAIRNS, 1992, p. 252), “ligado à nobreza e ao alto clero da sua terra” (NICHOLS, 1992, p. 180) e de Jeanne Lefranc, que morreu quando Calvino tinha 5 ou 6 anos (COSTA, 2006, p. 12).
“Como Gérard era secretário apostólico de Charles de Hangest – bispo de Noyon, de 1501 a 1525 – e procurador fiscal do município, a sua família mantinha íntimas relações com as famílias nobres da região” (COSTA, 2006, p. 12), desta forma, procurou dar a melhor educação para seus filhos. Por causa de sua influência, isto garantiu a Calvino, em 1521 aos doze anos de idade, um benefício concedido pelo bispo de Noyon, que lhe permitiu custear as despesas de sua educação (GEORGE, 1994, p. 168).
Calvino recebeu a sua educação elementar, com os filhos da família Hangest (COSTA, 2006, p. 13). “Além de professores particulares, Calvino estudou na mesma escola dos filhos dos nobres de sua cidade, o Colégio de Capeto” (COSTA, 2006, p. 13).
Em 1523, Calvino vai para Paris, preparar-se para o sacerdócio  e inicia seus estudos na mais famosa universidade da Europa, no Collège de la Marche (CAIRNS, 1992, p. 169), tendo como mestre o grande humanista Maturinus Corderius (COSTA, 2006, p. 13). Alguns vezes depois, foi para o Collège de Montaigu - escola por onde passou Erasmo de Roterdã – estudando sob a direção de um mestre espanhol, Antonio Coronel, destacando-se no estudo da gramática (COSTA, 2006, p. 13).
Em 1528, Calvino conclui o curso de Artes e seu pai o envia para a Universidade de Órleans, para estudar Direito, tornando-se bacharel em Direito em 14 de fevereiro de 1531 (COSTA, 2006, p. 14).
Em 1531, com a morte de seu pai, Calvino volta a Paris para dar seguimento a sua verdadeira paixão, a literatura clássica (GEORGE, 1994, p. 171).

Não se sabe com certeza quando e como se deu a conversão de João Calvino, contudo, estima-se que foi no período entre 1532 e 1534, e que tenha sido influenciado por seu primo Pedro Roberto Olivétan (COSTA, 2006, p. 15).
Nichols diz que “a mudança foi resultado das influências dos novos estudos e dos ensinos de Lutero” (1992, p. 181). Em 1533, Calvino teve de fugir de Paris, devido a um discurso que ajudou a preparar,  proferido por Nicolas Cop na Universidade de Paris, que propunha uma reforma na Igreja (COSTA, 2006, p. 15). Nessa época evidenciava mudanças em sua vida, em direção ao protestantismo.  
Em 1534, quando completaria 25 anos, idade legal para ser ordenado, Calvino voltou para  Noyon e renunciou aos benefícios eclesiásticos (COSTA, 2006, p. 15) “Como fica evidente, nesse ínterim, Calvino havia sido convertido ao protestantismo” (COSTA, 2006, p. 15).


3. A Jornada de Calvino como Reformador

A fuga de Calvino de Paris, por causa do discurso de Nicolas Cop, que ele ajudou preparar, revelou o seu espírito reformador e seu envolvimento com o protestantismo. “Calvino deixou o país apressado e encontrou refúgio na cidade reformada de Basiléia, o lar de Cop, que já se encontrava lá” (GEORGE, 1994, p. 176).
Em 1535, o primo de Calvino, Olivétan fez a primeira tradução protestante francesa das Escrituras (COSTA, 2006, p. 7). “A tradução, feita diretamente dos originais hebraicos e gregos, foi utilizada pela primeira geração de calvinistas franceses na proclamação do Evangelho” (COSTA, 2006, p. 17). O Novo Testamento foi editado em 1534 e em 1535, saiu a sua segunda edição com o Antigo Testamento (COSTA, 2006, p.). Esta segunda edição foi revisada e prefaciada por Calvino.
Na cidade de Basiléia em 1536, Calvino publica a primeira edição das Institutas (GEORGE, 1994, p. 176). Este trabalho foi introduzido com uma carta ao Rei Francisco I, com o propósito de convencer o rei a ter uma atitude mais moderada com os seus companheiros cristãos de Calvino (GEORGE, 1994, p. 177). Contudo, o propósito básico das Institutas era catequético (GEORGE, 1994, p. 178).
Em 1536, Calvino viajou de Paris para Estrasburgo, “onde esperava estabelecer-se para seu antigo desejo de descanso e estudo” (GEORGE, 1994, p. 179). Nessa viagem, pernoitou em Genebra. Em Genebra, Guilherme Farel algum tempo antes, havia levado a cidade a abraçar a Reforma. Farel ficou sabendo que Calvino estava em Genebra e foi ao seu encontro, solicitar ajuda para concluir a reforma na cidade (CAIRNS, 1992, p. 253). Calvino embora tenha relutado no início, aceitou a proposta de Farel. Porém, a permanência de Calvino e Farel na cidade durou menos de dois anos, pois, em abril 1538, por causa de um conflito relacionado à disciplina da Igreja, eles foram expulsos da cidade (GEORGE, 1994, p. 180).
Entre 1538 e 1541, Calvino permaneceu em Estrasburgo, pastoreando refugiados franceses, onde Tomás Bucer dirigiu a Reforma e ensinou teologia (CAIRNS, 1992, p. 253). Nesse tempo, em 1539, lança uma edição totalmente revisada das Institutas, que era três vezes mais longa que a versão de 1536 (GEORGE, 1994, p. 181). Em 1541, publica-se a primeira tradução francesa das Institutas (GEORGE, 1994, p. 181).
Em 1541, Calvino é convidado a voltar a cidade de Genebra para continuar com a Reforma naquela cidade (NICHOLS, 1992, p. 182). O propósito de Calvino de voltar a Genebra, era tornar a cidade “uma república teocrática que seria o modelo na terra do reino de Deus no céu” (OLSON, 2001, p. 419).
Conforme Nichols:
Os meios pelos quais se propusera tornar Genebra uma comunidade cristã foram: uma igreja totalmente reorganizada; leis que expressassem a moral bíblica; um sistema educacional de primeira ordem (1992, p. 182).

Em 1541, em Genebra, Calvino promulgou as Ordenanças Eclesiásticas
Que delineavam as atividades de quatro classes de oficiais na igreja. Elas estabeleciam uma associação de pastores para dirigir a disciplina, um grupo de mestres para ensinar a doutrina,um grupo de diáconos para administrar a obra de caridade e, sobre eles, o consistório, composto de seis ministros e doze anciãos, para supervisionar a teologia e a moral da comunidade, com a faculdade de punir quando necessário, com a excomunhão os membros renitentes. Para garantir a eficácia do sistema, Calvino estabeleceu outras penalidades mais severas (CAIRNS, 1992, p. 254).

Os ideais de Calvino quanto à educação, “inspirados por sua convicção de que a verdadeira religião e a educação estão inseparavelmente associadas” (NICHOLS, 1992, p. 183), resultaram na criação da Academia, em 5 de junho de 1559 (LOPES, 2003, p. 67). A Academia era dividia em duas partes: Schola Privata (colégio com sete classes) e Schola Publica (nível superior com ênfase nas artes e teologia) (LOPES, 2003, p. 67).
Calvino morreu em Genebra em 1564 e Teodoro Beza, o reitor da Academia de Genebra, assumiu a liderança do trabalho na cidade (CAIRNS, 1992, p. 254).

4. Os Escritos de Calvino

Como diz George: “Qualquer pessoa que deseje fazer um estudo completo da teologia de Calvino tem de consultar ao menos seis fontes distintas dentro de seu imenso corpus literário” (1994, p. 185). Isto vale também para os outros aspectos de seu pensamento, incluindo o político.
Têm-se assim as seguintes fontes:

4.1 As Institutas

Calvino editou As Institutas, inicialmente em 1536 e em 1559 ampliou a deu a forma final a esse trabalho. As Institutas desde o seu primeiro lançamento, foi sendo ampliada por Calvino por toda a sua vida. “Ao todo, ele produziu oito edições do texto latino (1536, 1539, 1543, 1545, 1550, 1553, 1554, 1559) e cinco traduções para o francês (1541, 1545, 1551, 1560)” (GEORGE, 1994,  p. 185).
Leith falando sobre o valor desse trabalho de Calvino, diz que trata-se da “mais influente declaração da teologia reformada em particular e da teologia protestante em geral”, e “é também um marco literário” (1997, p. 182).
As Institutas se dividem em quatro partes, seguindo a divisão do Credo Apostólico: I. O Conhecimento de Deus, o criador; II. O Conhecimento de Deus o Redentor; III. O Modo pelo qual Recebemos a Graça de Cristo; IV. Os Meios Externos ou Auxílios pelos quais Deus nos Chama para a Companhia de Cristo e nela nos mantém (LEITH, 1997, p. 183).
O propósito de Calvino com esta obra era servir a Igreja de Cristo, oferecendo um livro que pudesse
preparar e instruir os que queiram aplicar-se ao estudo da Teologia, que facilmente possam ler a Sagrada Escritura e aproveitar-se de sua lição entendendo-a bem, e ir por um caminho direito sem apartar-se dele (1999, p. 24).

4.2 Os Comentários

João Calvino produziu vários comentários das Escrituras. Seus comentários serviam de complemento As Institutas (GEORGE, 1994, p. 186).
George diz o seguinte sobre os comentários bíblicos de Calvino:
Recorrendo a seu excelente conhecimento de grego e hebraico e a seu treinamento na filosofia humanista, Calvino produziu comentários sobre todo o Novo Testamento, exceto 2 e 3 João e Apocalipse, sobre o Pentateuco, Josué, Salmos e Isaías. Os comentários de Calvino e seus sermões-conferências sobre o Antigo Testamento preencheram 45 volumes na tradução inglesa do século XIX, publicada pela Sociedade de Tradução Calvinista. Todo o trabalho exegético de Calvino é marcado por um lado pela brevidade e, por outro, pela modéstia. Seu objetivo era penetrar na mente do autor tão concisa e claramente possível, evitando demonstrações profusas de erudição e digressões a assuntos secundários. Ele também não hesitava em dizer que não entendia algumas passagens da Bíblia (1994, p. 187).


4.3 Sermões

Como foi visto acima, os seus sermões formam um grande volume de escritos. Ele tinha o hábito de pregar através dos livros da Bíblia. “Seu método era pregar sobre o Novo Testamento aos domingos e sobre o Antigo Testamento nos dias úteis” (GEORGE, 1994, p. 187). Seus sermões eram anotados por diversos fiéis franceses refugiados e alguns deles foram publicados durante a vida de Calvino (GEORGE, 1994, p. 187)

4.4 Folhetos e Tratados

O Pensamento de Calvino pode ser conhecido, além das Institutas, comentários e sermões, por meio de numerosos folhetos e tratados.
Alguns desses escritos eram dirigidos contra oponentes teológicos, como os reformadores radicais (Psychopannychia, 1534; contra os Libertinos, 1545), os católicos romanos (Um Inventário de Relíquias, 1543; Antídoto para o Concílio de Trento, 1547) e os luteranos (Westphal, Heshusius). Outros são abordagens mais gerais sobre temas reformados, como a Necessidade da Reforma da Igreja (1544), Pequeno tratado sobre a Ceia do Senhor (1541) e o Tratado sobre a Predestinação Eterna de Deus (1552) (GEORGE, 1994, p. 188).

4.5 Cartas

Calvino escreveu inúmeras cartas, a seus colegas reformadores, a reis e príncipes, a igrejas perseguidas, a protestantes presos, a pastores, a vendedores de livros (GEORGE, 1994, p. 188). George diz que “o alcance internacional da teologia de Calvino e a extensão de sua influência pessoal podem ser captados apenas observando suas cartas” (1994, p. 188).

4.6 Escritos Litúrgicos

Consciente de seu papel pastoral e que a maneira de recuperar a  vida moral e religiosa do povo era instruindo-o, Calvino produziu uma confissão de fé e um catecismo para complementar a obra “A Forma das Orações” (1542) (GEORGE, 1994, p. 188).
Através desses escritos e obras de Calvino pode-se extrair o seu pensamento sobre a relação entre Igreja e Estado.

  

5. Igreja e Estado no Pensamento de João Calvino

O pensamento de João Calvino sobre Igreja e Estado influenciou grandemente vários países, trazendo transformações políticas, sociais, culturais, ou seja, em todos os aspectos que se possam prever. Neste capítulo, serão destacados alguns princípios que nortearam o pensamento de Calvino sobre a relação entre Igreja e Estado. Esses princípios sobre tal tema, serviram de base para a formação do pensamento calvinista posterior, que produziu transformações políticas e religiosas em diversos países que se tornaram reformados e calvinistas. Não se tem a pretensão de esgotar aqui, todo o pensamento do reformador sobre a relação entre Igreja e Estado. O que se pretende é apresentar mesmo que de forma limitada, seu pensamento, de tal forma que o leitor deste, possa conhecer um pouco do reformador João Calvino e sua importância para a formação da sociedade moderna.

5.1. A Separação entre Igreja e Estado

Até o período da Reforma Protestante sabe-se que a relação entre Igreja e Estado era caracterizada pela mistura de limites. A igreja Católica Apostólica Romana, por meio do papado, entendia ser função da Igreja interferir politicamente no Estado. A Igreja Católica entendia que estava acima do Estado e portanto, o papa e os bispos tinham o direito de se intrometer nos negócios do Estado. Por exemplo em Genebra, cidade da Suíça onde Calvino se destacou como reformador, antes de sua chegada e da Reforma, era comandada por três autoridades e que, dentre elas se destacava a do bispo “que não somente era o chefe espiritual da igreja, o ‘príncipe de Genebra’, mas também, teoricamente, o soberano da cidade, com poderes para cunhar moedas, comandar a cidade em tempo de guerra, julgar apelações, e conceder indultos” (LOPES, p. 4).
Calvino compreendia  que embora os dois regimes, o espiritual e o civil, fossem  ambos legitimamente de origem divina, dados por Deus ao homem, contudo, deveria se estabelecer a distinção entre eles. Falando sobre o poder civil, sendo de origem divina diz o seguinte: “Não se deve, pois, ter a menor dúvida de que o poder civil é uma vocação não somente santa e legítima diante de Deus, mas também deveras sacrossanta e honrosa entre todas as demais” (CALVINO, 2006, vol. 4, p. 150).
 Em suas palavras percebe-se a distinção que estabelece entre os dois regimes. Em suas Institutas, depois de falar sobre as características e limites do governo eclesiástico, Calvino fala sobre o governo civil, estabelecendo alguns contrastes entre os dois. Ele diz:
Sendo, pois, que foram constituídos para o homem dois regimes e que já falamos suficientemente  sobre o primeiro, que reside na alma, ou no homem interior, e que concerne à vida eterna, aqui se requer que também exponhamos claramente o segundo, que visa a unicamente estabelecer uma justiça civil e aperfeiçoar os costumes exteriores. Primeiro, antes de avançar no assunto, devemos recordar a distinção anteriormente exposta para não suceder o que comumente sucede com muitos, o erro de confundir inconsideradamente as duas coisas, as quais são totalmente diferentes. [...] Mas quem souber discernir entre corpo e alma, entre esta presente vida transitória e a vida por vir, que é eterna, entenderá igualmente muito bem que o reino espiritual de Cristo e a ordem civil são coisas muito diferentes (2006, vol. 4. p. 145).

Continuando a falar sobre a distinção entre Estado e Igreja diz:
Visto, pois, que é uma loucura judaica cercar e encerrar o reino de Cristo sob os elementos deste mundo, e nós, antes, pensamos (como a Escritura nos ensina amplamente) que o fruto que nos cabe receber da graça de Cristo é espiritual, cuidemos zelosamente de manter dentro dos seus limites esta liberdade, a qual nos é prometida e oferecida em Cristo. Pois, por que é que o próprio apóstolo que nos ordena que não nos submetamos de novo “a jugo de escravidão”, noutra passagem ensina que os servos não devem preocupar-se com o estado no qual estejam, sendo que a liberdade espiritual pode muito bem subsistir na servidão civil? Nesse sentido também devem ser entendidas outras declarações que ele faz, quais sejam: que no reino de Deus “não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher”. E igualmente: “não pode haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre; porém Cristo é tudo em todos”. Com essas sentenças Paulo quer dizer que é indiferente a condição a que pertencemos entre os homens, ou qual a nação a cujas leis devemos obediência, visto o reino de Cristo não se localiza nestas coisas (2006, vol. 4, p. 145).

Fica claro que, para Calvino, há uma distinção entre os dois regimes, e que portanto, um não tem ingerência sobre o outro ou a primazia.

5.2. A ilegitimidade da Igreja em exercer domínio sobre o Estado

Calvino é bastante contundente em criticar a atitude dos bispos católicos, em querer exercer o domínio político sobre o Estado e por meio disso, tirar proveito. O reformador chega a chamá-los de desabusados e gananciosos, e diz que aqueles que “têm abusado do favorecimento dos príncipes e têm tirado proveito disso, com essa atitude mostram claramente que não são bispos” (CALVINO, 2006, vol. 4, p. 133).
Calvino para provar sua tese de que a Igreja não deve se incumbir do governo do Estado, faz algumas perguntas cujas respostas, são para ele evidentes e claras:
Primeiro, têm direito os bispos de isentar-se da justiça e de seduzir e dirigir os governos das cidades e do país, bem como outros cargos que absolutamente não lhes competem? Pois o fardo do seu ofício já é tão grande que, se procurassem desincumbir-se dele perseverantemente, a duras penas conseguiriam fazê-lo. Outra coisa: é conveniente e próprio que, com o séqüito de servidores, com suas pomposas vestimentas, mesas e casas, imitem os príncipes? Sua vida não deve ser um exemplo de sobriedade, temperança, modéstia e humildade? E mais: é coisa que cabe ao ofício de pastores e bispos tomarem eles posse não somente de cidades, burgos e castelos, mas também dos grandes condados e ducados, e finalmente estenderem suas garras até os reinos e impérios? Pois o inviolável mandamento de Deus não os proíbe de toda cobiça e avareza? Mas eles são tão desabusados que se atrevem a dar evasiva e a gabar-se de que é muito conveniente que a dignidade da igreja seja sustentada com tais pompas e que, todavia, com isso eles não ficam tão afastados dos seus encargos que não possam dedicar-se aos mesmos (2006, vol. 4, p. 132).

Calvino continua a defender seu pensamento, usando o exemplo dos apóstolos que, não podendo cuidar dos necessitados, da pregação e ensino, se desincumbiram do trabalho de assistência aos necessitados passando tal encargo para outros, para poderem se dedicar ao ensino e pregação. O reformador com base no exemplo dos apóstolos pergunta:
Porque, se aqueles apóstolos, os quais, segundo a excelência das graças que receberam de Deus, eram muito mais capazes do que ninguém depois deles de se desincumbir satisfatoriamente de grandes encargos, e, todavia, reconheceram que não poderiam dedicar-se ao mesmo tempo à administração da Palavra e à administração do serviço beneficente de distribuição de esmolas sem desfalecerem sob o peso do trabalho, como é que estes tais que, comparados com os apóstolos não são nada, poderiam sobrepujar cem vezes mais o diligente labor apostólico? Certamente é uma ousadia deveras temerária tentar realizar tal empresa, e, contudo, é o que tem sido feito (2006, vol. 4, p. 133).

Calvino diz que a conseqüência não era outra, “senão que tais administradores, abandonando o seu próprio cargo, realizam o trabalho de outros” (2006, vol. 4, p. 133). Percebe-se que para o reformador, quando a igreja por meio de seus líderes exerce o governo das cidades ou países, realiza um trabalho que não é seu e portanto, deixa de realizar adequadamente o que de fato é sua função e ministério, ficando sobrecarregada. Quando isso acontece a Igreja se desqualifica, perdendo sua essência.
Conforme Calvino demonstra, seria incoerência da parte dos bispos com a mensagem cristã,  desejar deter o poder, algo que segundo o reformador é condenado por Jesus Cristo. Diz ele:
[...] se é um apoio próprio e conveniente à sua dignidade que eles sejam elevados a tais alturas e que sejam respeitados e temidos pelos maiores príncipes do mundo, terão do que se queixar de Jesus Cristo, a quem dessa maneira eles desonram insolentemente. Porquanto, conforme a opinião deles, que maior injúria lhes poderia ele fazer do que dizer: “Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”? Com essas palavras o Senhor lançou para bem longe do ofício deles toda a altivez e toda a glória deste mundo (2006, vol. 4, p. 132).


5.3. O Estado não tem nenhuma autoridade Espiritual sobre a Igreja

Se por um lado a Igreja não pode exercer domínio sobre o Estado, por outro lado, Calvino também entende, que este não tem o direito de exercer autoridade espiritual sobre aquela, a ponto de confundir “a disciplina eclesiástica em si com a gestão política. Disto queixa-se Calvino particularmente, que foi esta confusão tolerada na Alemanha e que ameaça ela sempre ganhar as Igreja Reformadas” (BIÉLER, 1990, p. 381).
Biéler cita sobre esse assunto, o que Calvino diz em um de seus comentários Bíblicos:
Bem é certo que os Reis e seus príncipes, se fazem o seu dever, são protetores da religião e provedores de nutrição da Igreja, como os chama Isaías (42.23). Eis, então, o que principalmente se requer dos reis, que usem do gládio que Deus lhes pôs na mão para manter Seu culto em sua pureza. Há, entretanto, pessoas irrefletidas que os fazem demasiado espirituais. E é este um vício que reina por toda a Alemanha; e mesmo nestes países a voga é excessiva. E, agora, sentimos por experiência quais são os frutos que provêm dessa raiz, isto é, que os Príncipes e todos aqueles que exercem poder soberano tão espirituais se julguem ser que já não mais deve haver nem regime nem governo para o estado da disciplina eclesiástica. E este sacrilégio reina entre nós, uma vez que os Príncipes se não podem conter em seu ofício, sem ultrapassar os limites da razão; pelo contrário, pensam que não podem reinar, a não ser que  hajam de abolir toda a autoridade da Igreja e sejam soberanos e juízes finais, tanto na doutrina quanto em toda a gestão e governo espirituais (1990, p. 381).


5.4. A Missão do Estado para com a igreja

Conforme já foi destacado, Calvino estabelece distinção entre a Igreja e Estado. A igreja não tem o direito de governar o Estado, nem tão pouco o Estado tem autoridade sobre a Igreja. São instituições distintas, contudo,  possuem entre elas “relações fundamentais  que não são simples relações ocasionais, pelo contrário, verdadeiros laços duráveis, essenciais à sua existência” (BIÉLER, 1990, p. 379).
Um dos pontos fundamentais do pensamento de Calvino, no que se refere à missão do Estado em relação à Igreja é que, cabe a ele “não somente manter certa ordem na sociedade, mas também prover o sustento da Igreja e da pregação fiel da Palavra de Deus entre os cidadãos” (BIÉLER, 1990, p. 379).
Comentando o texto bíblico da carta do apóstolo Paulo,  Calvino enumera as vantagens de um governo bem regulamentado:
A primeira é uma vida tranqüila, porquanto os magistrados, se encontram bem armados com espada para a manutenção da paz. [...] a segunda vantagem consiste na preservação da piedade, ou seja, quando os magistrados se diligenciam em promover a religião, em manter o culto divino e em requerer reverência pelas coisas sacras. A terceira vantagem consiste na preocupação pela seriedade pública: pois o benefício advindo dos magistrados consiste que impeçam os homens de se entregarem a impurezas bestiais ou a vergonhosa devassidão, bem como a preservar a modéstia e a moderação (1998, p. 57).

Para Calvino o Estado tem o dever de manter a ordem e preservar a religião:
Que ninguém estranhe que eu incumba o governo civil de manter em ordem e em segurança a religião, encargo que aparentemente neguei ao poder dos homens; porque aqui também digo que para mim é inadmissível que os homens a seu bel-prazer forjem leis referentes à religião e sobre como se deve honrar a Deus; coibindo aqui não menos do que coibi acima. O que eu aprovo é uma ordem civil que cuide para que a religião verdadeira, contida na Lei de Deus, não seja publicamente violada nem maculada por uma licença impune (2006, vol. 4, p. 148).

Desta forma, embora exista uma distinção entre o Estado e a Igreja, isto não significa que os dois não tenham uma estreita relação, e por isso, que o governo civil tendo sido instituído por Deus, tem o dever de “impedir que a idolatria, as blasfêmias contra o nome de Deus e contra a sua verdade, e outros escândalos relacionados com a religião sejam publicamente fomentados e semeados entre o povo” (2006, vol. 4, p. 147).

5.5.  A Missão da Igreja para com o Estado

Embora a Igreja não possa se intrometer no governo das cidades e países, ou seja, ela não possa exercer o governo civil, contudo, a Igreja tem uma missão política a ser exercida. Desta forma, Calvino demonstra que o primeiro dever da Igreja é de orar pelas autoridades e isto, “em qualquer país que os cristãos se encontrassem, independente da forma de governo daquele país, por mais hostil que as autoridades fossem” (LOPES, p. 16).
Diz Calvino:
[...] visto que Deus designou magistrados e príncipes para a preservação do gênero humano, e por mais que fracassem na execução da designação divina, não devemos, por tal motivo, cessar de ter prazer naquilo que pertence a Deus e desejar que seja preservado. Eis a razão por que os crentes, em qualquer país em que vivam, devem não só obedecer às leis e ao comando dos magistrados, mas também, em suas orações, devem defender seu bem-estar diante de Deus. [...] que aspiremos o estado contínuo e pacífico das autoridades deste mundo, pois elas forma ordenadas por Deus (1998, p. 56).

Um segundo dever da Igreja, constituindo sua missão política é advertir as autoridades. Para Calvino quando a Igreja deixa de exercer esse papel, então a maldade ganha força.  “É este um dos aspectos essenciais da missão profética da Igreja” (BIÉLER, 1990, p. 384).
Comentando um texto do Antigo Testamento[1], sobre a corrupção dos líderes religiosos de Israel diz:
Coisa horrível era e monstruosa, que não mais houvesse qualquer eqüidade ou justiça nos próprios profetas e sacerdotes, que deviam esclarecer e mostrar o caminho aos outros, uma vez que Deus os havia ordenado guias e condutores dos demais. Visto que eles mesmos se comportavam deslealmente, inevitável era que houvesse uma injustiça demasiado vil que reinava entre o povo em geral [...] eis que o Profeta mostra [...] que se não pode objetar Deus que é Ele excessivamente rigoroso ao exercer crueldade contra o povo, já que suas maldades eram vindas até o ponto que não mais podiam ser suportadas (op. cit. BIÉLER, 1990).

Um terceiro dever da Igreja é tomar a defesa dos pobres e dos fracos contra os ricos e poderosos. “Ela deveria consistentemente alertar o Estado a que proteja os fracos, os oprimidos e explorados pelos ricos, os que não possuem poder político ou econômico, e que não têm proteção social” (LOPES, p. 16).
Um quarto dever da Igreja é recorrer à autoridade política na aplicação das sanções disciplinares. “Ao lado desta dupla missão  de oração e advertência, tema a Igreja o dever de recorrer ao Estado para as sanções necessárias ao exercício de sua disciplina. O Estado, no entanto, permanece inteiramente livre para responder ou não às solicitações da Igreja” (BIÉLER, 1990, p. 388).



CONCLUSÃO

O pensamento de João Calvino sobre a relação entre Igreja e Estado diferiu do que, até antes da reforma protestante, era defendido pela Igreja Católica Romana. Calvino propôs uma separação entre os dois regimes, contudo, procurou demonstrar que embora distintos, tinham uma estreita relação de deveres de um para com o outro. Desta forma a Igreja tinha uma missão política e o Estado a Missão de promover e cuidar da religião.
Percebe-se que a contribuição de Calvino quanto a tal assunto, trouxe mudanças importantes para a sociedade ocidental. Estudar sobre o pensamento de Calvino, implica em não só entende-lo como um teólogo, mas também como um homem da política.
O sistema gerado por Calvino, conhecido como Calvinismo serviu de base para a formação política de países como a Holanda, Inglaterra e Estados Unidos. Sobre isso Abraham Kuiper (1837-1920), teólogo e filósofo calvinista holandês, líder de um dos principais partidos e membro do parlamento por mais de trinta anos e que foi Primeiro Ministro da Holanda de 1901-1905, diz o seguinte:
No sentido filosófico, entendemos por Calvinismo aquele sistema de concepções que, sob a influência da mente mestre de Calvino, levantou-se para dominar nas diversas esferas da vida. E como nome político o Calvinismo indica aquele movimento político que tem garantido a liberdade das nações em governo constitucional; primeiro na Holanda, então na Inglaterra, e desde o final do século 18 nos Estados Unidos (2002, p. 22).

Nota-se então, a importância do reformador. Infelizmente o pensamento político, social de Calvino é desconhecido, sobretudo no Brasil e por aqueles que se intitulam protestantes.
Pode-se perceber o quanto seria saudável ao seguimento protestante brasileiro, se conhecesse melhor  Calvino e colocasse em prática seus princípios. Quem sabe assim, poderíamos ver uma atuação política  dos cristãos protestantes diferente, compreendendo que Igreja e Estado são regimes distintos e que por isso, devem caminhar em separado, contudo, guardando a salvo seus deveres mútuos. Quem sabe se o pensamento do reformador fosse praticado, teríamos líderes eclesiásticos preocupados com suas comunidades, e não fazendo um trabalho que não lhes cabe.
No Brasil entre os protestantes evangélicos, ainda prevalece uma concepção católica romana de política, ou seja, entende-se que a Igreja deve ocupar-se por meio de seus líderes do governo civil. Assim, em tempos de eleições por exemplo, a igreja torna-se palanque eleitoral, o pastor torna-se candidato, e as metas particulares de cada igreja torna-se proposta de governo.


BIBLIOGRAFIA

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[1] Jeremias 8.10: “Portanto, darei suas mulheres a outros, e os seus campos, a novos possuidores; porque, desde o menor deles até ao maior, cada um se dá à ganância, e tanto o profeta como o sacerdote usam de falsidade”.

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