Este trabalho tem como propósito
apresentar o pensamento de João Calvino sobre Igreja e Estado, procurando
demonstrar que a partir da reforma protestante e do referido reformador,
passou-se a pensar diferentemente do que sob a influência da Igreja Católica
Romana se pensava sobre a relação dos dois regimes.
Inicialmente serão apresentadas
informações sobre a vida de João Calvino, sua conversão ao protestantismo, sua
jornada como reformador e sobre seus escritos. Em seguida, a parte final deste
trabalho tratará sobre o seu pensamento acerca de Igreja e Estado. Será
demonstrado o que pensava o reformador sobre tal tema, ou seja, a relação entre
Igreja e Estado.
Sabe-se que embora João Calvino
seja considerado um teólogo, pregador e pastor, contudo, seu pensamento não só
influenciou a teologia protestante, como também, influenciou a prática
política, econômica e social, produzindo transformações importantes em diversos
países.
Calvino
foi um patrono dos modernos direitos humanos. Em seu pensamento, ele antecipou
a moderna forma republicana de governo. Contribuiu para a moderna compreensão
da relação entre lei natural e lei positiva. Ao lado dos movimentos sociais e
políticos de seu tempo, compreendeu plenamente que a origem do estado nacional
moderno, o surgimento do comércio burguês internacional, o desenvolvimento da
classe burguesa e a vasta expansão do mercado monetário exigiam uma nova
avaliação da proibição de empréstimo de dinheiro a juro. Além disso, Calvino
levantou-se contra os abusos do poder, em seu tempo, e debateu o problema do
direito à revolta. O impacto de Calvino e do Calvinismo sobre a moderna cultura
ocidental está bem documentado. Reconhece-se que esta influência foi grande.
Calvino e Calvinismo ocuparam seu lugar entre as maiores forças que moldaram
nossa moderna sociedade ocidental (REID, 1990, p. 11).
Percebe-se que estudar o
pensamento do reformador é importante para compreendermos as mudanças
políticas, sociais, econômicas que se implantaram a partir do século XVI, nos
países que abraçaram a Reforma Protestante.
João Calvino nasceu em Noyon, na Picardia em 10 de julho
de 1509, em uma família onde possivelmente ele fosse o segundo filho dentre
cinco irmãos (COSTA, 2006, P. 12). Era filho de Gérard Cauvin, “um respeitado
cidadão” (CAIRNS, 1992, p. 252), “ligado à nobreza e ao alto clero da sua
terra” (NICHOLS, 1992, p. 180) e de Jeanne Lefranc, que morreu quando Calvino
tinha 5 ou 6 anos (COSTA, 2006, p. 12).
“Como Gérard era secretário apostólico de Charles de Hangest – bispo de
Noyon, de 1501 a 1525 – e procurador fiscal do município, a sua família
mantinha íntimas relações com as famílias nobres da região” (COSTA, 2006, p.
12), desta forma, procurou dar a melhor educação para seus filhos. Por causa de
sua influência, isto garantiu a Calvino, em 1521 aos doze anos de idade, um
benefício concedido pelo bispo de Noyon, que lhe permitiu custear as despesas
de sua educação (GEORGE, 1994, p. 168).
Calvino recebeu a sua educação elementar, com os filhos da família
Hangest (COSTA, 2006, p. 13). “Além de professores particulares, Calvino
estudou na mesma escola dos filhos dos nobres de sua cidade, o Colégio de
Capeto” (COSTA, 2006, p. 13).
Em 1523, Calvino vai para Paris, preparar-se para o sacerdócio e inicia seus estudos na mais famosa
universidade da Europa, no Collège de la Marche (CAIRNS, 1992, p. 169), tendo
como mestre o grande humanista Maturinus Corderius (COSTA, 2006, p. 13). Alguns
vezes depois, foi para o Collège de Montaigu - escola por onde passou Erasmo de
Roterdã – estudando sob a direção de um mestre espanhol, Antonio Coronel,
destacando-se no estudo da gramática (COSTA, 2006, p. 13).
Em 1528, Calvino conclui o curso de Artes e seu pai
o envia para a Universidade de Órleans, para estudar Direito, tornando-se
bacharel em Direito em 14 de fevereiro de 1531 (COSTA, 2006, p. 14).
Em 1531, com a morte de seu pai, Calvino volta a
Paris para dar seguimento a sua verdadeira paixão, a literatura clássica
(GEORGE, 1994, p. 171).
Não
se sabe com certeza quando e como se deu a conversão de João Calvino, contudo,
estima-se que foi no período entre 1532 e 1534, e que tenha sido influenciado
por seu primo Pedro Roberto Olivétan (COSTA, 2006, p. 15).
Nichols
diz que “a mudança foi resultado das influências dos novos estudos e dos
ensinos de Lutero” (1992, p. 181). Em 1533, Calvino teve de fugir de Paris,
devido a um discurso que ajudou a preparar,
proferido por Nicolas Cop na Universidade de Paris, que propunha uma
reforma na Igreja (COSTA, 2006, p. 15). Nessa época evidenciava mudanças em sua
vida, em direção ao protestantismo.
Em 1534, quando completaria 25 anos,
idade legal para ser ordenado, Calvino voltou para Noyon e renunciou aos benefícios
eclesiásticos (COSTA, 2006, p. 15) “Como fica evidente, nesse ínterim, Calvino
havia sido convertido ao protestantismo” (COSTA, 2006, p. 15).
A fuga de Calvino de Paris, por causa
do discurso de Nicolas Cop, que ele ajudou preparar, revelou o seu espírito
reformador e seu envolvimento com o protestantismo. “Calvino deixou o país
apressado e encontrou refúgio na cidade reformada de Basiléia, o lar de Cop,
que já se encontrava lá” (GEORGE, 1994, p. 176).
Em 1535, o primo de Calvino, Olivétan
fez a primeira tradução protestante francesa das Escrituras (COSTA, 2006, p.
7). “A tradução, feita diretamente dos originais hebraicos e gregos, foi
utilizada pela primeira geração de calvinistas franceses na proclamação do
Evangelho” (COSTA, 2006, p. 17). O Novo Testamento foi editado em 1534 e em
1535, saiu a sua segunda edição com o Antigo Testamento (COSTA, 2006, p.). Esta
segunda edição foi revisada e prefaciada por Calvino.
Na cidade de Basiléia em 1536,
Calvino publica a primeira edição das Institutas (GEORGE, 1994, p. 176). Este
trabalho foi introduzido com uma carta ao Rei Francisco I, com o propósito de
convencer o rei a ter uma atitude mais moderada com os seus companheiros
cristãos de Calvino (GEORGE, 1994, p. 177). Contudo, o propósito básico das
Institutas era catequético (GEORGE, 1994, p. 178).
Em 1536, Calvino viajou de Paris para
Estrasburgo, “onde esperava estabelecer-se para seu antigo desejo de descanso e
estudo” (GEORGE, 1994, p. 179). Nessa viagem, pernoitou em Genebra. Em Genebra,
Guilherme Farel algum tempo antes, havia levado a cidade a abraçar a Reforma.
Farel ficou sabendo que Calvino estava em Genebra e foi ao seu encontro,
solicitar ajuda para concluir a reforma na cidade (CAIRNS, 1992, p. 253).
Calvino embora tenha relutado no início, aceitou a proposta de Farel. Porém, a
permanência de Calvino e Farel na cidade durou menos de dois anos, pois, em
abril 1538, por causa de um conflito relacionado à disciplina da Igreja, eles
foram expulsos da cidade (GEORGE, 1994, p. 180).
Entre 1538 e 1541, Calvino permaneceu
em Estrasburgo, pastoreando refugiados franceses, onde Tomás Bucer dirigiu a
Reforma e ensinou teologia (CAIRNS, 1992, p. 253). Nesse tempo, em 1539, lança
uma edição totalmente revisada das Institutas, que era três vezes mais longa
que a versão de 1536 (GEORGE, 1994, p. 181). Em 1541, publica-se a primeira tradução
francesa das Institutas (GEORGE, 1994, p. 181).
Em 1541, Calvino é convidado a voltar
a cidade de Genebra para continuar com a Reforma naquela cidade (NICHOLS, 1992,
p. 182). O propósito de Calvino de voltar a Genebra, era tornar a cidade “uma
república teocrática que seria o modelo na terra do reino de Deus no céu”
(OLSON, 2001, p. 419).
Conforme Nichols:
Os meios pelos quais se propusera tornar Genebra uma
comunidade cristã foram: uma igreja totalmente reorganizada; leis que
expressassem a moral bíblica; um sistema educacional de primeira ordem (1992,
p. 182).
Em 1541, em Genebra, Calvino
promulgou as Ordenanças Eclesiásticas
Que delineavam as atividades de quatro classes de
oficiais na igreja. Elas estabeleciam uma associação de pastores para dirigir a
disciplina, um grupo de mestres para ensinar a doutrina,um grupo de diáconos
para administrar a obra de caridade e, sobre eles, o consistório, composto de
seis ministros e doze anciãos, para supervisionar a teologia e a moral da
comunidade, com a faculdade de punir quando necessário, com a excomunhão os
membros renitentes. Para garantir a eficácia do sistema, Calvino estabeleceu
outras penalidades mais severas (CAIRNS, 1992, p. 254).
Os ideais de Calvino quanto à
educação, “inspirados por sua convicção de que a verdadeira religião e a
educação estão inseparavelmente associadas” (NICHOLS, 1992, p. 183), resultaram
na criação da Academia, em 5 de junho de 1559 (LOPES, 2003, p. 67). A Academia
era dividia em duas partes: Schola Privata (colégio com sete classes) e Schola
Publica (nível superior com ênfase nas artes e teologia) (LOPES, 2003, p. 67).
Calvino morreu em Genebra em 1564 e
Teodoro Beza, o reitor da Academia de Genebra, assumiu a liderança do trabalho
na cidade (CAIRNS, 1992, p. 254).
Como diz George: “Qualquer pessoa que
deseje fazer um estudo completo da teologia de Calvino tem de consultar ao
menos seis fontes distintas dentro de seu imenso corpus literário” (1994, p.
185). Isto vale também para os outros aspectos de seu pensamento, incluindo o
político.
Têm-se assim as seguintes fontes:
Calvino editou As Institutas,
inicialmente em 1536 e em 1559 ampliou a deu a forma final a esse trabalho. As
Institutas desde o seu primeiro lançamento, foi sendo ampliada por Calvino por
toda a sua vida. “Ao todo, ele produziu oito edições do texto latino (1536,
1539, 1543, 1545, 1550, 1553, 1554, 1559) e cinco traduções para o francês
(1541, 1545, 1551, 1560)” (GEORGE, 1994,
p. 185).
Leith falando sobre o valor desse
trabalho de Calvino, diz que trata-se da “mais influente declaração da teologia
reformada em particular e da teologia protestante em geral”, e “é também um
marco literário” (1997, p. 182).
As Institutas se dividem em quatro
partes, seguindo a divisão do Credo Apostólico: I. O Conhecimento de Deus, o
criador; II. O Conhecimento de Deus o Redentor; III. O Modo pelo qual Recebemos
a Graça de Cristo; IV. Os Meios Externos ou Auxílios pelos quais Deus nos Chama
para a Companhia de Cristo e nela nos mantém (LEITH, 1997, p. 183).
O propósito de Calvino com esta obra
era servir a Igreja de Cristo, oferecendo um livro que pudesse
preparar e instruir os que queiram aplicar-se ao
estudo da Teologia, que facilmente possam ler a Sagrada Escritura e aproveitar-se
de sua lição entendendo-a bem, e ir por um caminho direito sem apartar-se dele
(1999, p. 24).
João Calvino produziu vários
comentários das Escrituras. Seus comentários serviam de complemento As
Institutas (GEORGE, 1994, p. 186).
George diz o seguinte sobre os
comentários bíblicos de Calvino:
Recorrendo a seu excelente conhecimento de grego e
hebraico e a seu treinamento na filosofia humanista, Calvino produziu
comentários sobre todo o Novo Testamento, exceto 2 e 3 João e Apocalipse, sobre
o Pentateuco, Josué, Salmos e Isaías. Os comentários de Calvino e seus
sermões-conferências sobre o Antigo Testamento preencheram 45 volumes na
tradução inglesa do século XIX, publicada pela Sociedade de Tradução
Calvinista. Todo o trabalho exegético de Calvino é marcado por um lado pela
brevidade e, por outro, pela modéstia. Seu objetivo era penetrar na mente do
autor tão concisa e claramente possível, evitando demonstrações profusas de
erudição e digressões a assuntos secundários. Ele também não hesitava em dizer
que não entendia algumas passagens da Bíblia (1994, p. 187).
Como foi visto acima, os seus sermões
formam um grande volume de escritos. Ele tinha o hábito de pregar através dos
livros da Bíblia. “Seu método era pregar sobre o Novo Testamento aos domingos e
sobre o Antigo Testamento nos dias úteis” (GEORGE, 1994, p. 187). Seus sermões
eram anotados por diversos fiéis franceses refugiados e alguns deles foram
publicados durante a vida de Calvino (GEORGE, 1994, p. 187)
O Pensamento de Calvino pode ser
conhecido, além das Institutas, comentários e sermões, por meio de numerosos
folhetos e tratados.
Alguns desses escritos eram dirigidos contra
oponentes teológicos, como os reformadores radicais (Psychopannychia, 1534;
contra os Libertinos, 1545), os católicos romanos (Um Inventário de Relíquias,
1543; Antídoto para o Concílio de Trento, 1547) e os luteranos (Westphal,
Heshusius). Outros são abordagens mais gerais sobre temas reformados, como a
Necessidade da Reforma da Igreja (1544), Pequeno tratado sobre a Ceia do Senhor
(1541) e o Tratado sobre a Predestinação Eterna de Deus (1552) (GEORGE, 1994,
p. 188).
Calvino
escreveu inúmeras cartas, a seus colegas reformadores, a reis e príncipes, a
igrejas perseguidas, a protestantes presos, a pastores, a vendedores de livros
(GEORGE, 1994, p. 188). George diz que “o alcance internacional da teologia de
Calvino e a extensão de sua influência pessoal podem ser captados apenas
observando suas cartas” (1994, p. 188).
Consciente
de seu papel pastoral e que a maneira de recuperar a vida moral e religiosa do povo era
instruindo-o, Calvino produziu uma confissão de fé e um catecismo para
complementar a obra “A Forma das Orações” (1542) (GEORGE, 1994, p. 188).
Através
desses escritos e obras de Calvino pode-se extrair o seu pensamento sobre a
relação entre Igreja e Estado.
O
pensamento de João Calvino sobre Igreja e Estado influenciou grandemente vários
países, trazendo transformações políticas, sociais, culturais, ou seja, em
todos os aspectos que se possam prever. Neste capítulo, serão destacados alguns
princípios que nortearam o pensamento de Calvino sobre a relação entre Igreja e
Estado. Esses princípios sobre tal tema, serviram de base para a formação do
pensamento calvinista posterior, que produziu transformações políticas e
religiosas em diversos países que se tornaram reformados e calvinistas. Não se
tem a pretensão de esgotar aqui, todo o pensamento do reformador sobre a
relação entre Igreja e Estado. O que se pretende é apresentar mesmo que de
forma limitada, seu pensamento, de tal forma que o leitor deste, possa conhecer
um pouco do reformador João Calvino e sua importância para a formação da
sociedade moderna.
Até
o período da Reforma Protestante sabe-se que a relação entre Igreja e Estado
era caracterizada pela mistura de limites. A igreja Católica Apostólica Romana,
por meio do papado, entendia ser função da Igreja interferir politicamente no
Estado. A Igreja Católica entendia que estava acima do Estado e portanto, o
papa e os bispos tinham o direito de se intrometer nos negócios do Estado. Por
exemplo em Genebra, cidade da Suíça onde Calvino se destacou como reformador,
antes de sua chegada e da Reforma, era comandada por três autoridades e que,
dentre elas se destacava a do bispo “que não somente era o chefe espiritual da
igreja, o ‘príncipe de Genebra’, mas também, teoricamente, o soberano da
cidade, com poderes para cunhar moedas, comandar a cidade em tempo de guerra,
julgar apelações, e conceder indultos” (LOPES, p. 4).
Calvino
compreendia que embora os dois regimes,
o espiritual e o civil, fossem ambos
legitimamente de origem divina, dados por Deus ao homem, contudo, deveria se
estabelecer a distinção entre eles. Falando sobre o poder civil, sendo de
origem divina diz o seguinte: “Não se deve, pois, ter a menor dúvida de que o
poder civil é uma vocação não somente santa e legítima diante de Deus, mas
também deveras sacrossanta e honrosa entre todas as demais” (CALVINO, 2006,
vol. 4, p. 150).
Em suas palavras percebe-se a distinção que
estabelece entre os dois regimes. Em suas Institutas, depois de falar sobre as
características e limites do governo eclesiástico, Calvino fala sobre o governo
civil, estabelecendo alguns contrastes entre os dois. Ele diz:
Sendo, pois, que foram constituídos para o homem
dois regimes e que já falamos suficientemente
sobre o primeiro, que reside na alma, ou no homem interior, e que
concerne à vida eterna, aqui se requer que também exponhamos claramente o
segundo, que visa a unicamente estabelecer uma justiça civil e aperfeiçoar os
costumes exteriores. Primeiro, antes de avançar no assunto, devemos recordar a
distinção anteriormente exposta para não suceder o que comumente sucede com
muitos, o erro de confundir inconsideradamente as duas coisas, as quais são
totalmente diferentes. [...] Mas quem souber discernir entre corpo e alma,
entre esta presente vida transitória e a vida por vir, que é eterna, entenderá
igualmente muito bem que o reino espiritual de Cristo e a ordem civil são
coisas muito diferentes (2006, vol. 4. p. 145).
Continuando
a falar sobre a distinção entre Estado e Igreja diz:
Visto, pois, que é uma loucura judaica cercar e
encerrar o reino de Cristo sob os elementos deste mundo, e nós, antes, pensamos
(como a Escritura nos ensina amplamente) que o fruto que nos cabe receber da
graça de Cristo é espiritual, cuidemos zelosamente de manter dentro dos seus
limites esta liberdade, a qual nos é prometida e oferecida em Cristo. Pois, por
que é que o próprio apóstolo que nos ordena que não nos submetamos de novo “a
jugo de escravidão”, noutra passagem ensina que os servos não devem preocupar-se
com o estado no qual estejam, sendo que a liberdade espiritual pode muito bem
subsistir na servidão civil? Nesse sentido também devem ser entendidas outras
declarações que ele faz, quais sejam: que no reino de Deus “não pode haver
judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher”. E igualmente:
“não pode haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita,
escravo, livre; porém Cristo é tudo em todos”. Com essas sentenças Paulo quer
dizer que é indiferente a condição a que pertencemos entre os homens, ou qual a
nação a cujas leis devemos obediência, visto o reino de Cristo não se localiza
nestas coisas (2006, vol. 4, p. 145).
Fica
claro que, para Calvino, há uma distinção entre os dois regimes, e que
portanto, um não tem ingerência sobre o outro ou a primazia.
Calvino
é bastante contundente em criticar a atitude dos bispos católicos, em querer
exercer o domínio político sobre o Estado e por meio disso, tirar proveito. O
reformador chega a chamá-los de desabusados e gananciosos, e diz que aqueles
que “têm abusado do favorecimento dos príncipes e têm tirado proveito disso,
com essa atitude mostram claramente que não são bispos” (CALVINO, 2006, vol. 4,
p. 133).
Calvino
para provar sua tese de que a Igreja não deve se incumbir do governo do Estado,
faz algumas perguntas cujas respostas, são para ele evidentes e claras:
Primeiro, têm direito os bispos de isentar-se da
justiça e de seduzir e dirigir os governos das cidades e do país, bem como
outros cargos que absolutamente não lhes competem? Pois o fardo do seu ofício
já é tão grande que, se procurassem desincumbir-se dele perseverantemente, a
duras penas conseguiriam fazê-lo. Outra coisa: é conveniente e próprio que, com
o séqüito de servidores, com suas pomposas vestimentas, mesas e casas, imitem
os príncipes? Sua vida não deve ser um exemplo de sobriedade, temperança,
modéstia e humildade? E mais: é coisa que cabe ao ofício de pastores e bispos
tomarem eles posse não somente de cidades, burgos e castelos, mas também dos
grandes condados e ducados, e finalmente estenderem suas garras até os reinos e
impérios? Pois o inviolável mandamento de Deus não os proíbe de toda cobiça e
avareza? Mas eles são tão desabusados que se atrevem a dar evasiva e a gabar-se
de que é muito conveniente que a dignidade da igreja seja sustentada com tais
pompas e que, todavia, com isso eles não ficam tão afastados dos seus encargos
que não possam dedicar-se aos mesmos (2006, vol. 4, p. 132).
Calvino
continua a defender seu pensamento, usando o exemplo dos apóstolos que, não
podendo cuidar dos necessitados, da pregação e ensino, se desincumbiram do
trabalho de assistência aos necessitados passando tal encargo para outros, para
poderem se dedicar ao ensino e pregação. O reformador com base no exemplo dos
apóstolos pergunta:
Porque, se aqueles apóstolos, os quais, segundo a
excelência das graças que receberam de Deus, eram muito mais capazes do que
ninguém depois deles de se desincumbir satisfatoriamente de grandes encargos,
e, todavia, reconheceram que não poderiam dedicar-se ao mesmo tempo à
administração da Palavra e à administração do serviço beneficente de
distribuição de esmolas sem desfalecerem sob o peso do trabalho, como é que
estes tais que, comparados com os apóstolos não são nada, poderiam sobrepujar
cem vezes mais o diligente labor apostólico? Certamente é uma ousadia deveras
temerária tentar realizar tal empresa, e, contudo, é o que tem sido feito
(2006, vol. 4, p. 133).
Calvino
diz que a conseqüência não era outra, “senão que tais administradores,
abandonando o seu próprio cargo, realizam o trabalho de outros” (2006, vol. 4,
p. 133). Percebe-se que para o reformador, quando a igreja por meio de seus
líderes exerce o governo das cidades ou países, realiza um trabalho que não é
seu e portanto, deixa de realizar adequadamente o que de fato é sua função e
ministério, ficando sobrecarregada. Quando isso acontece a Igreja se
desqualifica, perdendo sua essência.
Conforme Calvino demonstra, seria
incoerência da parte dos bispos com a mensagem cristã, desejar deter o poder, algo que segundo o
reformador é condenado por Jesus Cristo. Diz ele:
[...] se é um apoio próprio e conveniente à sua
dignidade que eles sejam elevados a tais alturas e que sejam respeitados e
temidos pelos maiores príncipes do mundo, terão do que se queixar de Jesus
Cristo, a quem dessa maneira eles desonram insolentemente. Porquanto, conforme
a opinião deles, que maior injúria lhes poderia ele fazer do que dizer: “Sabeis
que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade
sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande
entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós
será vosso servo; tal como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas
para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”? Com essas palavras o
Senhor lançou para bem longe do ofício deles toda a altivez e toda a glória
deste mundo (2006, vol. 4, p. 132).
Se
por um lado a Igreja não pode exercer domínio sobre o Estado, por outro lado,
Calvino também entende, que este não tem o direito de exercer autoridade
espiritual sobre aquela, a ponto de confundir “a disciplina eclesiástica em si
com a gestão política. Disto queixa-se Calvino particularmente, que foi esta
confusão tolerada na Alemanha e que ameaça ela sempre ganhar as Igreja
Reformadas” (BIÉLER, 1990, p. 381).
Biéler
cita sobre esse assunto, o que Calvino diz em um de seus comentários Bíblicos:
Bem é certo que os Reis e seus príncipes, se fazem o
seu dever, são protetores da religião e provedores de nutrição da Igreja, como
os chama Isaías (42.23). Eis, então, o que principalmente se requer dos reis,
que usem do gládio que Deus lhes pôs na mão para manter Seu culto em sua
pureza. Há, entretanto, pessoas irrefletidas que os fazem demasiado
espirituais. E é este um vício que reina por toda a Alemanha; e mesmo nestes
países a voga é excessiva. E, agora, sentimos por experiência quais são os
frutos que provêm dessa raiz, isto é, que os Príncipes e todos aqueles que
exercem poder soberano tão espirituais se julguem ser que já não mais deve
haver nem regime nem governo para o estado da disciplina eclesiástica. E este
sacrilégio reina entre nós, uma vez que os Príncipes se não podem conter em seu
ofício, sem ultrapassar os limites da razão; pelo contrário, pensam que não
podem reinar, a não ser que hajam de
abolir toda a autoridade da Igreja e sejam soberanos e juízes finais, tanto na
doutrina quanto em toda a gestão e governo espirituais (1990, p. 381).
Conforme já foi destacado, Calvino
estabelece distinção entre a Igreja e Estado. A igreja não tem o direito de
governar o Estado, nem tão pouco o Estado tem autoridade sobre a Igreja. São
instituições distintas, contudo, possuem
entre elas “relações fundamentais que
não são simples relações ocasionais, pelo contrário, verdadeiros laços
duráveis, essenciais à sua existência” (BIÉLER, 1990, p. 379).
Um dos pontos fundamentais do
pensamento de Calvino, no que se refere à missão do Estado em relação à Igreja
é que, cabe a ele “não somente manter certa ordem na sociedade, mas também
prover o sustento da Igreja e da pregação fiel da Palavra de Deus entre os
cidadãos” (BIÉLER, 1990, p. 379).
Comentando o texto bíblico da carta
do apóstolo Paulo, Calvino enumera as
vantagens de um governo bem regulamentado:
A primeira é uma vida tranqüila, porquanto os
magistrados, se encontram bem armados com espada para a manutenção da paz.
[...] a segunda vantagem consiste na preservação da piedade, ou seja, quando os
magistrados se diligenciam em promover a religião, em manter o culto divino e
em requerer reverência pelas coisas sacras. A terceira vantagem consiste na
preocupação pela seriedade pública: pois o benefício advindo dos magistrados
consiste que impeçam os homens de se entregarem a impurezas bestiais ou a
vergonhosa devassidão, bem como a preservar a modéstia e a moderação (1998, p.
57).
Para Calvino o Estado tem o dever de
manter a ordem e preservar a religião:
Que ninguém estranhe que eu incumba o governo civil
de manter em ordem e em segurança a religião, encargo que aparentemente neguei
ao poder dos homens; porque aqui também digo que para mim é inadmissível que os
homens a seu bel-prazer forjem leis referentes à religião e sobre como se deve
honrar a Deus; coibindo aqui não menos do que coibi acima. O que eu aprovo é
uma ordem civil que cuide para que a religião verdadeira, contida na Lei de
Deus, não seja publicamente violada nem maculada por uma licença impune (2006,
vol. 4, p. 148).
Desta
forma, embora exista uma distinção entre o Estado e a Igreja, isto não
significa que os dois não tenham uma estreita relação, e por isso, que o
governo civil tendo sido instituído por Deus, tem o dever de “impedir que a
idolatria, as blasfêmias contra o nome de Deus e contra a sua verdade, e outros
escândalos relacionados com a religião sejam publicamente fomentados e semeados
entre o povo” (2006, vol. 4, p. 147).
Embora a Igreja não possa se
intrometer no governo das cidades e países, ou seja, ela não possa exercer o
governo civil, contudo, a Igreja tem uma missão política a ser exercida. Desta
forma, Calvino demonstra que o primeiro dever da Igreja é de orar pelas
autoridades e isto, “em qualquer país que os cristãos se encontrassem,
independente da forma de governo daquele país, por mais hostil que as
autoridades fossem” (LOPES, p. 16).
Diz
Calvino:
[...]
visto que Deus designou magistrados e príncipes para a preservação do gênero
humano, e por mais que fracassem na execução da designação divina, não devemos,
por tal motivo, cessar de ter prazer naquilo que pertence a Deus e desejar que
seja preservado. Eis a razão por que os crentes, em qualquer país em que vivam,
devem não só obedecer às leis e ao comando dos magistrados, mas também, em suas
orações, devem defender seu bem-estar diante de Deus. [...] que aspiremos o
estado contínuo e pacífico das autoridades deste mundo, pois elas forma
ordenadas por Deus (1998, p. 56).
Um
segundo dever da Igreja, constituindo sua missão política é advertir as
autoridades. Para Calvino quando a Igreja deixa de exercer esse papel, então a
maldade ganha força. “É este um dos
aspectos essenciais da missão profética da Igreja” (BIÉLER, 1990, p. 384).
Comentando
um texto do Antigo Testamento, sobre a corrupção dos líderes
religiosos de Israel diz:
Coisa horrível era e monstruosa, que não mais
houvesse qualquer eqüidade ou justiça nos próprios profetas e sacerdotes, que
deviam esclarecer e mostrar o caminho aos outros, uma vez que Deus os havia
ordenado guias e condutores dos demais. Visto que eles mesmos se comportavam
deslealmente, inevitável era que houvesse uma injustiça demasiado vil que
reinava entre o povo em geral [...] eis que o Profeta mostra [...] que se não
pode objetar Deus que é Ele excessivamente rigoroso ao exercer crueldade contra
o povo, já que suas maldades eram vindas até o ponto que não mais podiam ser
suportadas (op. cit. BIÉLER, 1990).
Um
terceiro dever da Igreja é tomar a defesa dos pobres e dos fracos contra os
ricos e poderosos. “Ela deveria consistentemente alertar o Estado a que proteja
os fracos, os oprimidos e explorados pelos ricos, os que não possuem poder
político ou econômico, e que não têm proteção social” (LOPES, p. 16).
Um quarto dever da Igreja é recorrer
à autoridade política na aplicação das sanções disciplinares. “Ao lado desta
dupla missão de oração e advertência,
tema a Igreja o dever de recorrer ao Estado para as sanções necessárias ao
exercício de sua disciplina. O Estado, no entanto, permanece inteiramente livre
para responder ou não às solicitações da Igreja” (BIÉLER, 1990, p. 388).
O pensamento de João Calvino sobre a
relação entre Igreja e Estado diferiu do que, até antes da reforma protestante,
era defendido pela Igreja Católica Romana. Calvino propôs uma separação entre
os dois regimes, contudo, procurou demonstrar que embora distintos, tinham uma
estreita relação de deveres de um para com o outro. Desta forma a Igreja tinha
uma missão política e o Estado a Missão de promover e cuidar da religião.
Percebe-se que a contribuição de
Calvino quanto a tal assunto, trouxe mudanças importantes para a sociedade
ocidental. Estudar sobre o pensamento de Calvino, implica em não só entende-lo
como um teólogo, mas também como um homem da política.
O sistema gerado por Calvino,
conhecido como Calvinismo serviu de base para a formação política de países
como a Holanda, Inglaterra e Estados Unidos. Sobre isso Abraham Kuiper
(1837-1920), teólogo e filósofo calvinista holandês, líder de um dos principais
partidos e membro do parlamento por mais de trinta anos e que foi Primeiro
Ministro da Holanda de 1901-1905, diz o seguinte:
No sentido filosófico, entendemos por Calvinismo
aquele sistema de concepções que, sob a influência da mente mestre de Calvino,
levantou-se para dominar nas diversas esferas da vida. E como nome político o
Calvinismo indica aquele movimento político que tem garantido a liberdade das
nações em governo constitucional; primeiro na Holanda, então na Inglaterra, e
desde o final do século 18 nos Estados Unidos (2002, p. 22).
Nota-se então, a importância do
reformador. Infelizmente o pensamento político, social de Calvino é
desconhecido, sobretudo no Brasil e por aqueles que se intitulam protestantes.
Pode-se perceber o quanto seria
saudável ao seguimento protestante brasileiro, se conhecesse melhor Calvino e colocasse em prática seus
princípios. Quem sabe assim, poderíamos ver uma atuação política dos cristãos protestantes diferente,
compreendendo que Igreja e Estado são regimes distintos e que por isso, devem
caminhar em separado, contudo, guardando a salvo seus deveres mútuos. Quem sabe
se o pensamento do reformador fosse praticado, teríamos líderes eclesiásticos
preocupados com suas comunidades, e não fazendo um trabalho que não lhes cabe.
No Brasil entre os protestantes
evangélicos, ainda prevalece uma concepção católica romana de política, ou seja,
entende-se que a Igreja deve ocupar-se por meio de seus líderes do governo
civil. Assim, em tempos de eleições por exemplo, a igreja torna-se palanque
eleitoral, o pastor torna-se candidato, e as metas particulares de cada igreja
torna-se proposta de governo.
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